Será possível abrir a vivência individualista do sofrimento a um lugar de encontro e de amor?
A resposta não é óbvia e pode parecer até ofensiva para quem sofre ou acompanha de perto o sofrimento, mas foi no chamamento a descobrir a resposta a esta pergunta que dei o meu sim a Jesus e me tornei Enfermeira. É um sim diário que tenta ver e provocar este lugar de encontro e de união de amor que pode ser o sofrimento.
Podia começar este texto por tentar explicar a lógica do sofrimento, o porquê de sofrermos ou porque é que Deus permite o sofrimento, mas digo-vos que não sei responder a nenhuma destas perguntas. Poderia levar uma vida inteira a tentar arranjar uma resposta e mesmo assim não conseguir. Acho que a resposta a estas perguntas está entre tantas outras que tornam o nosso caminho enigmático e uma busca constante por perguntas e respostas que nunca se esgota. Esta busca permanente pela Verdade renova a força para vivermos todos os dias com o mesmo entusiasmo que tem uma criança na idade dos porquês.
A propósito deste tema, São João Paulo II escreveu uma carta em que assume que o sofrimento é algo tão profundo quanto o homem. Diz que “o sofrimento pertence à transcendência do homem; é um daqueles pontos em que o homem está destinado a superar-se a si mesmo e é chamado de modo misterioso a fazê-lo”. O sofrimento é praticamente inseparável da existência terrena do Homem. Pergunto-me então, porque é que evitamos falar e pensar sobre o sofrimento se sabemos que é certo, que em algum momento da nossa vida, se vai cruzar no nosso caminho?
Nesta mesma carta São João Paulo II diz que o sofrimento “suscita: compaixão, respeito e intimida”. Pensar nestas três coisas, e perceber no concreto como são verdadeiras e como o coração do homem não consegue ficar indiferente perante o sofrimento deixa-me de coração apertado e enternecido. É nele que me compadeço, respeito e fico intimidada, mas é acima de tudo onde quem sofre se descobre vulnerável e reconhece repentinamente que precisa de ajuda. Aqui começa a bonita descoberta da necessidade de um outro que cuide de mim, em quem confio a necessidade de amor e de me sentir acompanhado.
O Homem é um complexo em que interagem: corpo, alma e espírito. Esta relação faz com que o corpo seja uma unidade de sentido que nos permite relacionarmo-nos com o mundo. As partes são absolutamente indissociáveis. Nunca é só o corpo que adoece ou a alma que sofre; são um só, por isso, poder-se-ia dizer que um corpo doente é sempre uma alma e um espírito doente. Quando falamos em cuidar do Homem não nos podemos esquecer que precisamos de cuidar destas três vertentes, ou seja do Homem como um todo.
Das três partes o espírito é o que nos permite tomarmos decisões, o que nos dá sentido à vida e é o que renova a pessoa que somos em cada instante, uma pessoa nova em cada decisão e não meramente uma “pessoa em potência” que se perde nas indecisões e no que poderia ser.
A dificuldade de encontrar um sentido naquilo que estamos a viver pode levar-nos a entrar numa espiral de incompreensão, o que torna o sofrimento ainda mais profundo e doloroso uma vez que o homem não consegue viver sem propósito (sem espírito) na sua vida.
É verdade que não é óbvio pensar num propósito para o sofrimento, mas cabe ao homem dar um sentido a tudo aquilo que vive. Mesmo à dor.
Um professor deu-me um livro que mudou a maneira como passei a olhar para a fragilidade e para o sofrimento. Este livro baseia-se numa analogia com uma ostra que gostava de usar para ilustrar o que vivo e trago no meu coração, mas que me custa pôr por palavras, acho que exatamente por saber que é um tema importante na minha vida.
“A pérola é esplêndida e preciosa. Nasce da dor. Nasce quando uma ostra é ferida. Quando um corpo estranho- uma impureza, um grãozinho de areia- penetra o seu interior e a habita, a concha começa a produzir uma substância (a madrepérola) com que o cobre para proteger o seu corpo invadido. No fim ter-se-á formado uma bela pérola, brilhante e valiosa. Se não for ferida, a ostra nunca poderá produzir pérolas, porque a pérola é uma ferida cicatrizada”.
(Elogio da imperfeição)
Pensando nas feridas que trazemos e na lógica da auto superação de que nos fala São João Paulo II será que as nossas feridas estão à espera de ser envolvidas e abraçadas com a substância cicatrizante que é o amor para nos poderem dar tesouros?
O sofrimento é o lugar do chamamento a amar. Acredito que existe um grande mistério a acontecer naqueles que sofrem e que estes são escolhidos por Deus para partilhar algumas das dores que Cristo suportou na Cruz. Vejo-os como preferidos de Deus, num lugar privilegiados para aliviar o peso que Jesus carrega. Eu, em contrapartida, vejo-me fraca e por isso acredito que não seria capaz de sofrer com Ele. Vivo a tentar dar uso à sensibilidade com que Deus encheu os meus olhos e a contemplar a beleza que é ver o próprio Jesus tão evidentemente naqueles que sofrem.
Há muito tempo que Jesus me chamava a visitá-lo naquela que é a chamada Cidade da Alegria. Sabia que Jesus me pedia que o fosse encontrar, não sabia como e muito menos porquê tão longe, mas Ele encarregou-se de reorganizar a minha vida e de me levar. Fui sentindo o peso daquilo que estava prestes a fazer, mas sem a mínima ideia do impacto que ia ter na minha vida. Explicar o que vivi é e acho que vai ser sempre difícil dado que ainda há muito por se revelar.
Ao longo do tempo tenho percebido como os “sims” que damos ao chamamento de Jesus demoram a dar fruto e a amadurecer, mas que se vão revelando sempre em coisas novas no resto das nossas vidas. Ainda tenho muito por amadurecer e por perceber, mas gostava de vos contar o que vivi entre os preferidos de Cristo, não por achar que tive uma experiência única e inigualável que tem de ser contada, mas por achar que muito da fé se transmite quando abrimos o nosso coração para que outros o possam ver.
O primeiro impacto com a realidade da Índia foi difícil, não vou mentir. É daqueles sítios para os quais nos podemos preparar uma vida inteira, mas que nunca vamos estar prontos para encontrar. Com o passar dos dias a dor com que olhava para as ruas começou a dar lugar a uma admiração e a uma beleza que não percebia bem de onde vinham. Rezei esta feia realidade que estava a viver e comecei a ver as ruas caóticas, sujas e barulhentas com os olhos do coração, passando a ver como Jesus cuida de cada um dos Seus filhos que dormem pelas ruas, que vivem em condições precárias, que sofrem, que têm fome, que têm muitas dores, que vão a Calcutá fazer voluntariado… Fá-lo das maneiras mais originais, mais particulares e mais detalhadas. Viver no caos com o coração preso a Cristo revelou-se a única forma garantida de encontrar Paz, e esta Paz levo para o resto da minha vida.
Numa conversa com uma rapariga de Madrid, partilhávamos como estava a ser vivido o tempo em Calcutá, em especial na Semana Santa. Nesta conversa falávamos sobre o misto de dor e amor que estávamos a sentir por viver aquela realidade de maneira tão intensa. Ela contou-me que numa chamada com um amigo diácono tinha sido alertada para a Graça que é sentir o desconforto de viver Calcutá.: “Elena, que bom que te dói estares aí, estás a tocar as feridas abertas de Jesus” disse-lhe o amigo. Foi neste momento que percebi que Jesus me chamava a viver Calcutá, ali, concretamente, onde o apelo que trazia desde há muito na minha alma, de consolar Jesus, se personificava.
Durante este mês ia 3 dias por semana, com as Missionárias da Caridade, para um dispensário. Preparava os materiais que havia e que fossem necessários e ficava sentada num banco de plástico, com o pouco material que as irmãs têm para tratar das feridas, à espera de ser visitada por Cristo e poder lavar, tratar e amar cada uma das Suas feridas. Isto fez o meu coração crescer de maneira absurda e encher-se de um amor que não sabia existir. Estava a encontrar-me com as pérolas esplêndidas e preciosas de Cristo, onde o próprio se fazia presente.
Isto é de uma beleza e de uma profundidade na minha alma que só vos consigo explicar nas lágrimas com que os meus olhos se enchem sempre que revejo estes dias. Quinta-feira Santa estava eu a limpar a cara ferida de Cristo, com um sorriso que revela o privilegiada que sei que sou por ser estranhamente chamada a este cuidado.
Tocar as feridas com o coração nas mãos e envolvê-las com a madrepérola que as cicatriza. Dou testemunho do sorriso com que cada um ficava por se sentir amado num momento do seu dia. É este o chamamento que trago hoje para a minha vida: levar o amor de Jesus àqueles com quem me cruzar para se lembrarem pelo menos nesse momento de que são muito amados. O sofrimento é este lugar privilegiado onde eu me encontro com o outro que sofre e onde sou desesperadamente chamada a amar.
Teresinha Freitas Simões