Sábado da 1ª Semana da Quaresma

4 de Março

Hoje voltamos a olhar para o Evangelho do Domingo passado. Aprofundando a sua mensagem, procuramos perceber como ele ilumina e retrata as nossas vidas e como serve de inspiração para tantas palavras e obras de homens e mulheres que de algum modo se deixaram tocar pela vida de Jesus.

As tentações de Cristo

1. A Palavra de Deus

Naquele tempo, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo Diabo.
Jejuou quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome.
O tentador aproximou-se e disse-lhe: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães». Jesus respondeu-lhe: «Está escrito: “Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus”».
Então o Diabo conduziu-O à cidade santa, levou-O ao pináculo do Templo
e disse-Lhe: «Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo, pois está escrito: “Deus mandará aos seus Anjos que te recebam nas suas mãos, para que não tropeces em alguma pedra”».
Respondeu-lhe Jesus: «Também está escrito: “Não tentarás o Senhor, teu Deus”».
De novo o Diabo O levou consigo a um monte muito alto, mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e a sua glória e disse-Lhe: «Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares».
Respondeu-lhe Jesus: «Vai-te, Satanás, porque está escrito: “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele prestarás culto”». Então o Diabo deixou-O, e aproximaram-se os Anjos e serviram-no.

2. O ambiente

A cena das tentações antecede a vida pública de Jesus. Quer em termos cronológicos quer em termos lógicos, este episódio segue-se imediatamente ao Batismo no Jordão. Cheio do Espírito Santo, Jesus é por Ele conduzido ao deserto, capaz de enfrentar e vencer a tentação de uma proposta de atuação messiânica diferente daquela que é a proposta do Pai.

Os quarenta dias e quarenta noites que Jesus aí passou resumem os quarenta anos que Israel passou em caminhada pelo deserto. O deserto é, no imaginário judaico, o lugar da provação, onde os israelitas experimentaram, por diversas vezes, a tentação do abandono de Deus e do Seu projeto de libertação.

Contudo, é também o lugar da descoberta do rosto de Deus, o lugar onde o Povo fez a experiência da sua fragilidade e pequenez e aprendeu a confiar na bondade e no amor de Deus. O deserto, acima de tudo, é um lugar de verdade.

As três tentações aqui apresentadas não são mais do que três faces de uma única tentação: a tentação de prescindir de Deus, de escolher um caminho de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência, à margem das propostas de Deus.

Mas, para Jesus, ser “Filho de Deus” significa viver em comunhão com o Pai, escutar a Sua voz, realizar os Seus projetos, cumprir obedientemente os Seus planos. Ao longo da Sua vida, diante das diversas “provocações” que os adversários Lhe lançam, Jesus vai confirmar esta Sua “opção fundamental” e vai procurar concretizar, com total fidelidade, o projeto do Pai.

Israel, ao longo da sua caminhada pelo deserto, sucumbiu frequentemente à tentação de ignorar os caminhos e as propostas de Deus. De Jesus vai nascer um novo Povo, cuja vocação essencial é viver em comunhão com o Pai e concretizar o Seu projeto para o mundo e para os homens.

3. A arte

Briton Rivière (1840-1920), Cristo no deserto (óleo sobre tela, 1898), Guildhall Art Gallery, Londres

Ao contrário de muitas outras representações deste episódio, a presença de Satanás não é aqui materializada, mas nem por isso deixa de ser tangível. Na figura inclinada de Jesus podemos ler o esforço da resistência e a dignidade silenciosa do seu papel de Salvador da humanidade. A tentação surge aqui como nós a experienciamos: uma voz no ouvido, discreta, confusa e perturbadora.

Inegável e aparentemente dominante, está a  escuridão da possibilidade de fazer o mal, de uma vida desviada do plano de Deus. Ao fundo, mais contido, o brilho do horizonte sugere um novo amanhecer, a renovação da esperança, a possibilidade do Bem. Ao centro, vestido de branco, está Jesus, a luz do mundo.

De uma forma simples e bela, o pintor optou por representar todos os elementos deste episódio por meio da cor. Na verdade, não é preciso ver de perto a expressão de Jesus para saber como se sente, como luta por nós. Já todos estivemos ali, sentados lado a lado com Ele, tentados pela possibilidade de esquecer o Pai.

4. As palavras dos homens

Para quê ir ao deserto?

Pode-nos parecer um lugar a evitar, este deserto da tentação. Mas é um lugar habitado por Jesus, para onde também nós podemos ser conduzidos. Para o vivermos santamente, temos que deixar para trás a abundância de tantas coisas supérfluas, para voltarmos abundantes de Deus.

“Moisés escreveu durante quarenta dias e quarenta noites sem lágrimas, sem pão. Eu tenho tanta abundância que morro sem palavras. Prometo que vou esvaziar a casa, aumentar o eco daquilo que me dizes.”

Daniel Faria, Sétimo Dia, Assírio&Alvim, 2021